quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Revendo Casa Grande & Senzala

Para quem acompanha discussões pelo mundo virtual, uma imagem recorrente, invocada sobretudo nesses tempos de radicalização política, é a da Casa Grande & Senzala como metáfora para nossa grande desigualdade social. Afirma-se que nossa elite ainda vive como os senhores de engenho, e nossa classe trabalhadora é equiparada a escravos. Por minha própria experiência, sei que quanto mais um conceito é banalizado, mais ele se distancia de sua acepção original. Penso então que é oportuno retornar às origens dessa imagem que nos persegue lá vão oitenta e cinco anos, desde que saiu a primeira edição da obra de Gilberto Freyre.

Muitos consideram-na a obra magna de nossa sociologia, a verdadeira explicação do Brasil. É elogiada por haver rompido com o determinismo racial então vigente, que considerava a miscigenação um dos fatores de nosso atraso, e criticada por sua empostação paternalista, que edulcorava a escravidão e a conduta dos senhores. Não vou discutir aqui esses aspectos nem fazer uma resenha completa da obra, o que pode ser encontrado com facilidade em páginas didáticas. Vou apenas admitir que é uma obra datada, que já deu ao conhecimento nacional toda a contribuição que podia dar. Deste ponto em diante, o que existe é especulação, injunções variadas sobre o que Freyre disse ou quis dizer. Um bom exemplo é o epíteto de "democracia racial", frequentemente associado ao livro, mas que não aparece escrito em trecho algum.

Banalizada e incorporada ao imaginário coletivo, a obra foi responsável por uma desastrosa caricatura: o Brasil como uma imensa senzala habitada por mulatas assanhadas e portugueses lúbricos. Segundo se afirma, foi graças aos costumes depravados de nossos antepassados que o Brasil se viabilizou como nação, posto que a miscigenação diluiu o antagonismo natural entre senhores e escravos. Simples assim. Mas até que ponto podemos levar isto a sério? Existe aí de fato um significado antropológico profundo e peculiar ao Brasil?

A resposta não é simples, mas com certeza tal conclusão agrada aos povos do norte, que desde a época das grandes navegações têm alimentado a utopia dos trópicos como sendo uma região onde a moral cristã não se aplicaria: não existe pecado do lado de baixo do equador. Penso que esta é a melhor explicação da caricatura do Brasil-senzala ter sido tão difundida e apreciada mundo afora, chegando a ser materializada e exportada na forma de carnaval e show de mulatas. Tudo se encaixa: os portugueses, povo sulista, já teriam uma propensão natural à mistura com povos tropicais, uma vez que eram descendentes de mouros (esquecido que a norte da África habitado pelos mouros não é tropical, mas subtropical). Quando se encontraram com índias e negras no Brasil, teve então início uma orgia fenomenal que gerou o povo brasileiro. Mas por detrás desse arrazoado se esconde um pressuposto nada científico: que os povos seriam tão mais propensos à sexualidade exacerbada quanto mais habitassem regiões quentes, como se fossem insetos ou lagartixas, que dependem do calor do sol para acionar seu metabolismo.
 
Cientes de como essa imagem foi construída, resta-nos desconstruí-la. A massa de brasileiros miscigenados foi de fato produto de escravas negras estupradas nas senzalas, como se diz? Isso sem dúvida acontecia, aqui como em qualquer lugar ou época onde existiram senhores e escravos. Mas o propósito do estupro não é gerar descendentes. Deve ser lembrado que embora o abuso sexual de escravas fosse aceito pelos costumes da época, a convivência de filhos legítimos e bastardos sob o mesmo teto não era. O próprio Freyre se referiu a perversas vinganças de sinhás ofendidas. Acredito que a maioria das crianças geradas pelas visitas dos sinhôs e sinhozinhos às senzalas era abortada, vendida para outra fazenda ou feita desaparecer de outra maneira.

A verdade é que a grande maioria dos brasileiros miscigenados não foi produto da coabitação de senhores brancos e escravas negras, mas da união dos primeiros colonos portugueses com esposas índias. Foi assim gerada a grande massa de caboclos e mamelucos, que constituíram o extrato mais antigo de nossa população - nem brancos nem índios, mas simplesmente brasileiros. Após a abolição da escravatura, acentuou-se a tendência, vigente até hoje, dos caboclos e seus descendentes se unirem aos negros recém-libertos, que tinham uma condição social parecida com a deles. Vale dizer, a maioria dos indivíduos hoje intitulados mulatos, na realidade são cafuzos, mistura de branco, preto e índio. Isso explica porque a população negra brasileira é tão diferente fisionomicamente da população negra norte-americana, embora sejam descendentes das mesmas etnias africanas.

Eu disse muita coisa? Ao que parece, não. Apenas mudei os atores do mesmo drama: então, ao invés de negras africanas, índias nativas foram estupradas por brancos europeus. Isso deu origem a outra caricatura até hoje bastante difundida: marinheiros portugueses saltando das caravelas e indo fazer amor com índias nuas na praia. Os portugueses, ao contrário dos ciosos colonos anglo-saxões, só queriam farrear e explorar o que a terra tinha para lhes oferecer. Mas foi assim mesmo que as coisas se passaram? Muitas índias foram abusadas, com certeza. Mas deve ser lembrado que, nos primórdios de nossa colonização, não havia mulheres brancas entre os colonos, que eram apenas um punhado tentando sobreviver em uma terra totalmente desconhecida. Nesse contexto, alianças com as tribos nativas eram indispensáveis, bem como a produção de descendentes o mais rápido e em maior quantidade possível, sem os quais os colonos não teriam sequer como subsistir quando lhe faltassem forças para o trabalho. A solução era o casamento com mulheres índias.

Os primitivos colonos portugueses não eram abusadores de mulheres. Eles tinham ligações estáveis com suas esposas índias, pois apenas ligações estáveis podiam produzir a grande quantidade de descendentes que eles necessitavam, e tinham que trata-las com respeito, se quisessem manter as alianças com as tribos. Seguiam os costumes locais, que aceitavam inclusive a poligamia. A lenda de que os portugueses apenas emprenhavam as índias e depois as abandonavam pode ter se originado dos costumes nativos, pelos quais as crianças só ficavam na companhia dos pais na primeira infância, e depois eram criadas coletivamente pela tribo inteira. Bem diferente do que aconteceu na América do Norte, onde desde a primeira leva de colonos já havia mulheres.

Foi este o diferencial: os portugueses coabitavam com índias por uma questão de sobrevivência, e não porque tivessem uma afinidade nata com povos tropicais. Os norte-americanos não fizeram o mesmo porque não tiveram necessidade, se bem que tampouco dispensaram alianças com os índios enquanto eram frágeis e pouco numerosos. Depois que as mulheres europeias começaram a aportar em grande quantidade no Brasil, os casamentos com índias se tornaram desnecessários, e o envolvimento sexual de brancos com índias adquiriu, de fato, um caráter de diversão e abuso, mas é duvidoso que grande quantidade de descendentes miscigenados tenha sido gerado a partir de então. A finalidade do sexo por diversão não é essa, e é sabido que a maioria das tribos praticava o infanticídio e não permitia o nascimento de nenhuma criança indesejada.

Os brasileiros miscigenados não foram produtos do estupro, isso é lenda. É totalmente primário, em termos de antropologia, supor que todo um grupo étnico possa ter sido formado dessa maneira. Nenhum francês aceitaria a tese de que seu povo é o produto de mulheres gaulesas estupradas por legionários romanos, nem um escocês diria que seu povo é originado de mulheres celtas estupradas por vikings, mas muitos, inclusive estudiosos, repetem com toda a seriedade de que o povo brasileiro é formado de mulheres índias e africanas estupradas por portugueses. Isso é falso. O Brasil não é uma imensa senzala, mesmo porque não foi povoado apenas por senhores de engenho e escravos. É esquecido que aqui também aportaram milhões de brancos pobres na qualidade de colonos e imigrantes, que jamais possuíram escravos. A dicotomia Senhor Branco X Escravo Negro, na verdade, nunca existiu da forma como tem sido apresentada. Se os antigos senhores de engenho não invocavam a raça para fundamentar sua presunção de superioridade, conforme Freyre mencionou, foi por um bom motivo: eles próprios não eram brancos puros, mas geralmente caboclos descendentes de índios.

Não é minha intenção desmerecer a obra de Freyre, mas justamente por respeitá-la, desagrada-me vê-la reduzida a um amontoado de chavões em prol da mistura racial e da sensualidade tropical. O que quero dizer é que essa obra não fornece a síntese do Brasil como um todo, a menos que sejam desprezados todos os demais caracteres nacionais que nunca habitaram o universo da casa grande e da senzala. Freyre retratou um Brasil arcaico, que sem dúvida dá embasamento para explicar muito do que somos hoje, mas é uma neurose ou sentimento de culpa acharmos que ainda estamos habitando a casa grande e a senzala do tempo dos senhores de engenho. Penso que é preciso rechaçar essa caricatura e colocar essa imagem onde é o seu devido lugar: no passado. E procurar entender certas colocações do próprio Freyre. Muitos dizem que ele apenas retratou o que via a sua volta. Mas ao contrário da crença generalizada, Freyre era filho de um médico, sempre morou na cidade e nunca vivenciou pessoalmente aquele muno rural e patriarcal que o fascinava. Outras obras do próprio autor ajudam a entender sua obra magna: pouco antes de morrer, ele publicou um livro de memórias intitulado De Menino a Homem, onde narrou experiências sexuais bizarras de sua juventude e deixou claro sua obsessão por sexo interracial.

Podemos perdoar Freyre por um certo excesso de imaginação.

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