domingo, 28 de maio de 2017

Releituras da História: os cangaceiros

Diante as saída do mercado editorial das boas revistas de História que eu acompanhava desde muito - a História Viva, a revista de História da Biblioteca Nacional, e agora não encontro mais a da BBC - tenho comprado a Leituras da História. De qualidade bem sofrível se comparada às anteriores, mas tenho a impressão de que está melhorando. Gostei de uma matéria sobre Lampião e o fenômeno do banditismo rural.

Endossando as condições sociais que fizeram florescer o banditismo no nordeste, contudo a matéria não deixa de atacar certos mitos duradouros que o cangaço suscitou desde então. Vejo aí um bom sinal. A admiração que o bando de Lampião despertava no populacho é bem sabida, e literalmente cantada em verso e prosa no cordel. De fato, os cangaceiros tinham um senso de honorabilidade desconhecido em bandidos comuns, característica do fenômeno denominado banditismo social. O bandido social se acomoda ao quadro social vigente e é aceito pela população, tal como descrito por Eric Hobsbawm. Mas tão antiga e folclórica quanto as façanhas de Lampião são os atos de sadismo e crueldade perpetrados por ele, ressalva que Hobsbawm não deixou de fazer, a despeito de sua evidente simpatia pelos "bandidos sociais". A matéria de Leituras da História endossou o quanto Lampião estava longe de ser um herói: seu bando oprimia humildes trabalhadores e expulsava posseiros das terras dos coronéis aliados do rei do cangaço.

Isso vai na contramão de uma narrativa que tomou corpo desde os anos 60 - a apresentação de Lampião como um rebelde em luta contra as classes dominantes. Fazia parte do espírito a época, com a intelectualidade dominada por pensadores de esquerda, ávidos para criar um herói popular à feição de um Pancho Villa tupiniquim. Não existindo em nossa história personagem similar, o cangaceiro foi reciclado para este papel. Particularmente o cineasta Glauber Rocha foi responsável pela construção do mito. Mas bem observado de uma perspectiva distanciada no tempo, vê-se que não foi um fenômeno isolado: sobretudo desde o fracasso da luta armada, que não teve o apoio dos trabalhadores, os pensadores e produtores culturais de esquerda têm procurado angariar seu novo público entre os marginais, aqueles que Marx denominava o lumpen-proletariado, e com razão considerava imprestáveis como revolucionários, por seu caráter venal. E de fato, por toda a História os burgueses sempre compraram os lumpens por poucos tostões, inclusive para joga-los contra os trabalhadores.

Mas a substituição dos trabalhadores pelos marginais como público revolucionário tornou-se uma obsessão que só agora começa a ceder. Não se pode negar que faz um certo sentido: os bandidos são aguerridos, e quando querem, são até organizados - haja visto as facções criminosas que dominam as favelas. Só tem um problema: eles são capitalistas. Diria mais, hipercapitalistas, a julgar pelo consumismo e exibicionismo típicos dessa gente, e nesse aspecto distanciam-se irremediavelmente das massas tal como são idealizadas pelos intelectuais da esquerda. Enfim, desde o tempo de Lampião, se o zé povinho admirava o bandido, a recíproca não era verdadeira.

As leituras da História servem para dissolver os mitos.

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