terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Procuradorismo, o novo tenentismo?

Li um artigo de Aldo Fornazieri que me pareceu instigante. Analisando o papel de protagonismo que membros do ministério público, juízes e policiais federais - os procuradores, como ele os chama - têm assumido na política na época atual, ele traça um paralelo com o conhecido fenômeno do tenentismo do século passado.

O tenentismo é bem conhecido de nossa historiografia. Sabe-se que seus desdobramentos chegaram até o final do século 20. Mas existe um fenômeno atual que poderia ser chamado, grosso modo, de procuradorismo? Esse fenômeno apresenta alguns paralelos com o antigo tenentismo?

O procuradorismo, explica Fornazieri, se forjou em várias operações de combate à corrupção política e administrativa, destacando-se o escândalo do Banestado, a operação Satiagraha, a operação Castelo de Areia, os Mensalões tucano, petista e do DEM e, finalmente, a Lava Jato. Guarda alguma semelhança com o contexto em que surgiu o tenentismo no país dos anos vinte, auge da República Velha? De saída, pode-se apontar a entrada em cena de personagens que, em uma situação "normal", não teriam protagonismo: no passado, oficiais subalternos; no presente, meros funcionários concursados, teoricamente sem ligações políticas e voltados a suas carreiras. Também há em comum o discurso moralizante: os tenentes viam a República Velha como essencialmente corrupta, dominada por oligarcas que se utilizavam da fraude eleitoral.

Mas de saída, também, nota-se uma diferença flagrante: o tenentismo, embora iniciado do descontentamento de jovens oficiais que viam a honra militar ferida, mostrou-se fecundo em ideologias e projetos. Propunham o fim das oligarquias e o voto secreto; no plano econômico e social, a legislação trabalhista, educação obrigatória, política industrial nacional e defesa dos interesses nacionais. No assim chamado procuradorismo, o discurso moralista é abstrato, desligado de um plano político ou social.

Ao contrário do tenentismo, os problemas sociais, a questão da dominação das elites, a questão nacional e os rumos estratégicos do país não motivam a rebelião dos procuradores, juízes e policiais federais. O procuradorismo é motivado pela ideologia moralizante de coloração conservadora, típica das classes médias.

Mas lembram Hélio Jaguaribe e Francisco Iglesias, a década de 1920 vai representar também o aparecimento da luta ideológica. A devoção dos tenentes a essa fermentação de ideias foi tal que, como se sabe, acabou por cingir e desintegrar o movimento: uns aderiram ao comunismo, outros ao fascismo, a maior parte foi cooptada pelo desenvolvimentismo varguista que era tributário tanto de um quanto de outro. Nada surpreendente aí: o tenentismo deita suas raízes no positivismo de Comte do século 19, que desacreditava da política parlamentar e pregava que o governo eficiente deveria ser exercido na forma de uma "ditadura racional e científica" comandada por uma elite de iluminados sem ligações com grupos específicos. Essa ditadura científica viria a assumir o nome de tecnocracia durante o regime militar de 1964, que foi de fato o lance final do tenentismo, já tão distanciado de suas origens que poucos se lembravam que os generais de então eram os tenentes de outrora.

E o assim chamado procuradorismo, vai manter sua neutralidade, ou se deixará contaminar pela política? No momento não há sinais que permitam responder a essa pergunta. Fornazieri recorre à filosofia de Gramsci, invocando o conceito de crise de interregno e do surgimento do Partido do Estado, que conforme definição de Gramsci, seria uma espécie de partido apolítico, sem conexões com os partidos políticos, que assume o poder em tempos de crise com o único objetivo de manter o status quo dos grupos dominantes. Os procuradores, então, estariam formando o Partido do Estado surgido com a crise atual que se iniciou com o esgotamento do modelo petista a partir de 2013 e a explosão da corrupção nas estatais.

Não vou entrar no mérito da filosofia de Gramsci, que conheço pouco, mas simplificando a questão, parece-me que Fornazieri repete a ideia do poder moderador que, afirma-se, surge para salvar o país quando os demais poderes falham. Esse poder foi exercido pelo imperador no século 19, depois passou aos militares, e agora supostamente é exercido pelos procuradores. Se é isso, espero que o chamado procuradorismo deixe logo de existir, pois a presença de um poder moderador, real ou farsesco, é sempre a evidência da fragilidade das instituições.

Nenhum comentário:

Postar um comentário