sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Guia Politicamente Incorreto dos Presidentes - IV

Terminando a minha resenha do Guia Politicamente Incorreto dos Presidentes, de Paulo Schmidt, chego João Goulart. O autor não diz sobre ele muito mais do que já sabemos: Goulart foi um desastrado playboy, mais bem sucedido entre as mulheres e em seus negócios pessoais do que na política. Jamais teve um projeto bem delineado, e sua atuação limitou-se quase que só aos palanques, empolgando a multidão mas nulo nos gabinetes, na verdade mais deixando-se levar do que conduzindo a multidão.

Ficou na memória a imagem algo melancólica de um presidente jovem e idealista, que não soube lidar com as forças que o cercaram. Seu fracasso foi mais do que o fracasso de um projeto político, mas também o malogro de toda uma geração empolgada e ingênua, que sonhava e caiu das nuvens. Evoca a saudade de um tempo que nunca foi, mas poderia ter sido, e por isso mesmo pode ser imaginado conforme a vontade do freguês. Retornando à pessoa real de João Goulart, fica a pergunta: como indivíduo tão despreparado pôde ser ungido por Getúlio Vargas como seu sucessor? Não haveria melhores? O autor sugere que tudo aconteceu na segunda metade dos anos 40, quando Goulart começou a frequentar Vargas, então retirado em sua estância. Na ocasião Vargas estava deprimido por haver perdido seu filho mais novo, e Goulart havia perdido o pai, então, da carência de um e de outro, surgiu uma relação pai-filho. Parece-me explicação muito simplista, mas eu não consigo imaginar outra melhor.

Os generais-presidentes

Chegando aos presidentes do ciclo militar, o autor junta todos em um só capítulo, por não haver especificidades na biografia pessoal dos generais-presidentes além dos passos comuns da carreira militar. É verdade, mas é preciso denotar que houve, sim, características distintas entre um governo e outro. Não existiu apenas um governo militar, mas vários. Castelo Branco chegou ao poder em um golpe longamente tramado pela UDN e pelos oficiais que a cercavam, mas que ao contrário das expectativas, não conduziu ao poder a cúpula udenista, cujos líderes mais proeminentes como Carlos Lacerda foram cassados e os demais atirados na vala comum da ARENA. Castelo era um presidente já totalmente esvaziado de poder quando entregou o cargo a Costa e Silva, de quem não gostava. Antes mesmo da doença que o imobilizou, Costa e Silva já era um zumbi que não mais conseguia valer sua vontade. O que houve de fato a partir de 1964 não foi apenas um golpe, mas vários golpes dentro do golpe, que substituíram os antigos oficiais egressos do tenentismo e aliados aos udenistas por um outro grupo, gestado na ESG sob os ventos da guerra fria, este totalmente avesso à política partidária e de fato constituído por tecnocratas, que acreditavam que um país deve ser administrado de forma vertical e hierarquizada tal como uma grande empresa.

É nesse ponto que chegamos à figura enigmática de Emílio Médici, a própria síntese do período, por seu governo haver ocorrido bem no meio daqueles anos turbulentos e por haver encarnado em grau máximo o espírito da época: a repressão e o desenvolvimento. Foram os anos do "milagre brasileiro", mas paradoxalmente, ou  não, foram também os anos de repressão mais intensa, muito embora o próprio Médici desfrutasse de boa aceitação popular em razão do bom momento da economia. Por que figura aparentemente tão central do regime foi também tão apagada, a ponto de sumir da vida pública após o fim de seu governo e não ter feito sucessores com seu perfil?

A explicação que encontro reside na própria personalidade de Médici, cujo perfil não era o de um líder político, mas de um burocrata autoritário: a ditadura servia-o na medida em que permitia-o fazer obras conforme a sua vontade, sem pedir permissão a ninguém e sem ouvir críticas de ninguém. No tocante à repressão, Médici era ao mesmo tempo favorável e indiferente a ela: todos os que o interpelaram na época, coisa que só podia ser feita no interior de gabinetes e narrada posteriormente, ouviram dele uma justificativa insolente das violências que eram cometidas, mas o próprio Médici não tocava no assunto por iniciativa própria. Estão ausentes de seus discursos exortações e bravatas a respeito da luta anti-subversiva, lembro-me bem, era como se nada daquilo estivesse acontecendo. Médici não tinha cara de mau, parecia um avô daqueles que gostam de jogar bola com os netinhos...

No aspecto econômico, entretanto, o período militar não divergiu do modelo nacional-estatista de Vargas e Kubitschek, ,também oscilando entre sua vertente "nacionalista" (Vargas, Geisel) e sua vertente "entreguista" (Kubitscheck, Castelo). De fato, foi nesse período que o modelo nacional-estatista seria levado ao auge nos anos setenta e ao esgotamento nos anos oitenta. O pior legado dos militares, contudo, foi no aspecto político, com a liquidação das antigas cúpulas partidárias e sua substituição por políticos provincianos, reeditando as piores práticas da República Velha, que valorizava o interior atrasado em detrimento dos centros urbanos. O resultado foi o abastardamento de nossa classe politica, que prossegue até hoje.

João Baptista Figueiredo é hoje lembrado somente por seus cavalos e pela franqueza rude de suas declarações. Pediu para ser esquecido, e foi atendido.

José Sarney foi o perfeito retrato do abastardamento da classe política a que me referi, resultado da liquidação de todas as vanguardas durante o período militar, as de esquerda por certo, mas ironicamente também as de direita: acredito que nem o mais pessimista dos analista acreditaria, em 1964, que 20 anos depois a nova edição de Adhemar de Barros seria um Paulo Maluf, que Jânio Quadros deixaria saudades e que alguém como José Sarney seria um dia presidente. Um perfeito "coronel" do sertão, espécie de museu, Sarney, entretanto, surpreenderia: a desordem econômica na época era de tal monta que até esse coronelão pôde fazer pose de populista com seu Plano Cruzado e com a moratória da dívida externa, antigas reivindicações da esquerda, que ele fez o favor à nação de demonstrar que não prestavam. Ironia máxima, a única experiência genuinamente socialista da república brasileira aconteceu durante o seu governo, com o congelamento de preços, os fiscais do Sarney e a apreensão de bois no pasto, como uma ópera bufa.

De tanto em tanto, na política brasileira, surge um corpo estranho, que tem uma carreira meteórica, chega à presidência e em seguida desaparece tão rápido quanto surgiu. Foi o caso de Fernando Collor de Mello. O exemplo mais notável dessa estirpe foi Jânio Quadros, mas Collor esteve mais para um Jango de direita do que para um Jânio renascido. Tal como Jango, era jovem, rico, mulherengo e confundia imprudência com audácia. Oriundo do mais atrasado dos rincões da politica brasileira, emergiu com um discurso modernizante. Os resultados, contudo, foram desastrosos, e como é o destino dos corpos estranhos, foi expelido pelo organismo. Mas alguma coisa ficou. Aquela sua declaração de que os carros brasileiros "eram umas carroças" soa hoje como aquela palavra que quebra o encanto e faz despertar do sono, no caso, o sono do esgotado nacional-estatismo.

Itamar Franco é hoje mais lembrado por haver aparecido na foto com aquela modelo sem calcinha, e no entanto, fez um governo discreto mas sensato. Fernando Henrique Cardoso é hoje o mais vituperado dos ex-presidentes, mas vindo de quem vem, isso é um sinal de que ele saiu melhor do que a encomenda. Diga-se o que disser, para o bem ou para o mal, foi FHC o construtor do Brasil do século 21. Tal como Vargas, ele pertence àquela categoria de personagens que faz a transição entre duas eras distintas, no casa de FHC, justamente a transição entre a Era Vargas e a modernidade, transição esta que, infelizmente, não foi de todo concluída. FHC foi o herege máximo da política brasileira: encolheu o Estado, abriu a economia, privatizou estatais. Com isso fez o país sair do atoleiro da estagflação onde estava desde os anos 80, e entregou de bandeja a seu sucessor um país com as contas equilibradas. Nada disso, é claro, ocorreu sem percalços: FHC valorizou em excesso o método fácil da âncora cambial, também apreciado pelos argentinos, que dá resultados rápidos a curto prazo mas é extremamente arriscado a longo prazo. Todos sabemos o que aconteceu com a Argentina na virada do ano 2000, quando a corda da âncora cambial finalmente arrebentou, e parecia que o mesmo aconteceria no Brasil. Mas em 1999 FHC desatrelou o câmbio, provocando uma recessão na economia que desgastou o seu prestígio, mas impediu a explosão inflacionária. Agindo assim, inviabilizou a eleição de seu sucessor e deu os frutos para serem colhidos por Lula. Houvesse seguido o caminho argentino, FHC teria eleito Serra como seu sucessor, mas no colo dele teria deixado uma bomba prestes a explodir. É possível que se seguisse uma convulsão social tal como na Argentina, Serra seria forçado a renunciar  e o PT chegaria ao poder com muito mais força do que chegou em 2002. Mas FHC não fez isso.

De Lula e Dilma não falarei, pois tenho falado sobre eles todos os dias, e ainda não pertencem ao passado.

4 comentários:

  1. Pedro (aliás, se você preferir ser chamado pelo sobrenome, por favor não tenha receio de me "corrigir", heheh), eu só quero te dizer muito, muito obrigado pelos insights e sínteses que você compartilha aqui no blog. É raro pra mim mandar uma mensagem (mesmo que sucinta) pra algum blogueiro que eu respeite/admire, mas senti necessidade de abrir uma exceção nesse caso. Meu nome é Thiago Seman, sou de Curitiba, tenho 23 anos de idade, e atualmente estou terminando uma Graduação em Ciências Sociais (Bacharelado em Sociologia) pela Universidade Federal do Paraná. Não lembro qual foi exatamente a googlada que me levou à sua página lá por meados de 2011, mas eu me senti desafiado pelos seus textos, e tenho acompanhado o blog desde então.

    Durante boa parte da minha Graduação, eu encarei a sua produção intelectual aqui como um "contraponto" saudável - e necessário - à exposição que eu tinha/tenho ao pensamento hegemônico dentro do meu curso (e que está presente nas Humanidades brasileiras em geral), que consiste naquele estatismo caricato da esquerda, na demonização do setor privado, no repúdio ao fato de que na vida existem desigualdades inerentes ao ser humano, e por aí vai. Nesse sentido, era revigorante pra mim sair de uma aula genérica sobre marxismo ou antropologia relativista e daí ler aqui uma perspectiva liberal e conservadora exposta com argumentos sólidos. Aliás, eu ainda me identifico muito com alguns pressupostos ideológicos associados à esquerda (pois é, o meu apreço intelectual pelo blog não se desdobrou numa "conversão" política, heheh), então às vezes me pego discordando de alguma solução que você aponta no texto X ou Y, mas eu sempre - sem babação de ovo - consegui entender o seu raciocínio e inclusive concordar com os "diagnósticos" que você faz da maioria das mazelas sociais. E eu acredito que isso é um grande mérito seu como escritor e comentarista político/social, porque clareza de raciocínio é uma das qualidades mais subestimadas em textos de cunho político, heheh.

    Então obrigado mesmo pelo tempo e massa cinzenta que você dedica ao blog! Eu aprendi e ainda aprendo muito sobre várias figuras históricas e correntes de pensamento sobre as quais eu dificilmente teria lido a respeito se ficasse apenas na bibliografia básica do meu curso e nas falas dos professores. Nesse sentido, eu posso te dizer sem exagero que você contribuiu pra minha formação intelectual, hehe. Valeu!

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    1. É com grande prazer que fico sabendo que contribuí para a sua formação. Os blog´s da internet efetivamente abriram uma janela aos excluídos da vida acadêmica, e permitiram que o discurso viciado dos acadêmicos fosse contestado. Grande abraço!

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    2. Com certeza! Nesse sentido, a Internet tem ajudado a mudar a "narrativa política" nacional, e eu acredito que isso fortalece o nosso arremedo de sociedade civil (afinal, autoritarismo e dirigismo estatal não combinam com a disseminação de conhecimento). Um abraço e valeu de novo, Pedro!

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    3. Este comentário foi removido pelo autor.

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