quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Eu sou Charlie? Não exatamente.

É impossível não comentar o atentado em Paris contra a redação do Charlie Hebdo. Não vou repetir aqui minha condenação ao ato abominável, que isso é óbvio e já foi dito por muitos, mas vou tentar entender exatamente o que aconteceu. Esse blog é sobre História, e o atentado tem muito a ver com os tempos que estamos vivendo, mas - justamente pelo ponto de observação estar muito próximo ao tempo presente - temos dificuldade em avaliar corretamente aquilo que vemos. Uns reciclam o antigo "conflito de civilizações" entre ocidente e oriente, outros negam a motivação religiosa dos autores do atentado e tentam encaixar tudo a marretadas dentro de sua concepção particular de luta de classes - o velho Marx jogou fora um ponto de vista fundamental para entender a psique humana ao desprezar a religião...

Quanto a mim, passando ao largo da tentativa de dar uma explicação definitiva, limito-me a constatar que o fenômeno é por demais palpável e disseminado para ser visto como mero sinal dos tempos, e por demais complexo para se conformar às explicações parciais que até agora têm sido produzidas. Existe o conflito árabe-israelense? Sim, existe. Existe tensão entre os europeus e a comunidade muçulmana imigrada? Sim, existe. Existem amplas diferenças culturais entre cristãos e muçulmanos? Sim, existem. Mas nada disso explica completamente o ocorrido. É fato que o terrorismo islâmico está se tornando cada vez mais organizado e agressivo, e a tendência é piorar. Alguns contemporizam e afirmam que os ataques à religião deveriam ser criminalizados, da mesma forma que são os insultos racistas e o nazismo, enquanto outros berram: liberdade de expressão! Quanto a mim, nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Todos sabem que a liberdade de expressão tem limites. O racismo é crime, e agora também a homofobia. É proibido fazer apologia do crime e da violência. Poucos discordam que fazer a apologia do nazismo também deva ser proibido. Calúnia, difamação e plágio podem dar origem a ações na justiça contra seu autor. Então, por que não criminalizar também os ataques á religião?

Eu discordo. Religião é questão de crenças íntimas. A liberdade religiosa, tão consagrada nos regimes democráticos quanto a liberdade de expressão, assegura que ninguém será perseguido em razão de suas crenças. Mas se crer é permitido, não crer também é permitido. Tanto um quanto o outro pertencem à esfera da consciência individual: cada um é livre para acreditar no que quiser, mas não é livre para impor sua crenças a outrem, nem para proibir as crenças alheias - aí já saímos da consciência individual e entramos no social, que é regido por leis que permitam a mútua convivência. Assim sendo, por pior que tenha sido o mau gosto das charges anti-islâmicas publicadas no Charlie Hebdo (essa é a minha opinião), elas não constituem crime e não devem ser proibidas. Não houve ali um ataque pessoal, mas o ataque a uma ideia, e todos são livres para defender e atacar ideias. Eu acredito que a liberdade de atacar a religião foi uma conquista extraordinária da humanidade, uma espécie de ritual de passagem para o mundo moderno, e não deve ser revertida em hipótese alguma. A liberdade de atacar a religião livrou o mundo político e social da tirania religiosa, mas também livrou a religião da tirania do mundo político e s social - agora, cada um está no lugar onde deve estar, e mistura-los novamente é um retrocesso.

Mas assim, então, o que fazer quanto aqueles que não concordam com essa liberdade, e replicam com violência? Pode-se responder também com rigor: afinal, o alvo inimigo - os muçulmanos - estão em toda parte, e muita gente está mesmo a fim de ver o caldo entornar. Mas dar tiros em todas as direções não é muito produtivo. O efeito será aumentar o ressentimento, já alto, e levar à radicalização muitos elemento que até agora têm estado quietos. Eu penso, então, que o melhor a fazer é rir - não era essa a intenção daqueles que fizeram as charges? Então deve-se fazer mais charges e rir. Já dizia o chavão, rir é o melhor remédio.

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