quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

A quase-lógica ataca de novo: os degredados

Vi recentemente no blog de um professor um artigo interessante, que contesta um dos mais longevos e disseminados daqueles mitos sobre a História do Brasil que aprendemos na escola e repetimos pela vida afora com a convicção de quem enuncia uma verdade absoluta: O Brasil é uma terra cheia de bandidos e corruptos porque no passado fomos colonizados por degredados.

Essa assertiva quase sempre entra na discussão quando se procura explicar porque os EUA e outros países desenvolvidos que foram colônias no passado, hoje são tão ricos, ordeiros e honestos, ao passo que nós continuamos chafurdando na pobreza e na ladroagem. É nesse ponto que tocamos em outro mito escolar longevo: fomos uma "colônia de exploração", ao passo que eles foram uma "colônia de povoamento".

O artigo cita um outro artigo, este publicado na grande imprensa, da autoria de um conhecido escritor:

Foram os portugueses, porém, que disseminaram a prática da corrupção.  Diferentemente dos peregrinos ingleses que desembarcaram na América do Norte para se fixarem e construírem uma nova vida, os portugueses que vieram atrás de Cabral eram uma escória, um bando de renegados e desterrados que só queriam se aproveitar deste terreno baldio sem ninguém, para enriquecer e voltar à terrinha. Pois foram eles que se encarregaram de fiscalizar o contrabando do pau-brasil, aves, ouro e especiarias contra a Coroa Portuguesa.  Não podia dar certo.  Mas aqueles aventureiros portugueses estabeleceram um padrão de rapinagem que de lá para cá só fez se aprimorar.  Durma com uma corrupção dessas!


É bem redigido e parece até fazer lógica.  Mas é um exemplo daquilo que eu chamo de quase-lógica, uma praga que brota das salas de aula, propaga-se pela mídia e contamina o debate acadêmico até receber a chancela de verdade absoluta, tristeza de um país dividido entre iletrados e pretensos intelectuais. De fato, a presença de elementos com um histórico de má conduta social em uma comunidade contribui em algum grau para o aumento dos delitos naquela comunidade. Muitos dos primeiros capitães do Brasil deploraram a presença daqueles bandidos em suas capitanias, e escreveram cartas ao rei narrando os malfeitos que protagonizavam. Mas não é suficiente para explicar os atuais níveis de crime e de corrupção. Saindo do chute para a pesquisa séria, vê-se que o número de degredados foi relativamente pequeno entre os colonos, que a política de enviar degredados às colônias não durou tanto tempo assim, e tampouco era exclusividade de Portugal - a Inglaterra também enviou muitos degredados no início da colonização da Austrália, isso em época bem mais recente, e a Austrália hoje é um local aprazível e com baixos índices de crime e corrupção.

Como tampouco tem grande significado a dicotomia Colônia de Povoamento X Colônia de Exploração. Os conceitos são auto-explicativos, mas não explicam o que pretendem. O Brasil também foi uma colônia de povoamento. Ou alguém acredita que os únicos portugueses que aportavam aqui eram fidalgos que vinham assumir cargos públicos e tomar posse de sesmarias? Esses vieram, mas junto com eles também vieram milhares de colonos despossuídos, alguns talvez sonhando em fazer fortuna rápido e voltar à terra natal, mas a maioria, decerto, ciente de que jamais regressariam, mesmo porque tinham o exemplo de outros que haviam partido antes deles e não regressaram. O epíteto colônia de exploração, a meu ver, se aplica a ex-colônias como a Índia e a Indonésia, onde já existia uma população nativa e o colonizador só se fazia presente transitoriamente como funcionário da administração ou homem de negócios. Do mesmo modo, os EUA também foram uma colônia de exploração: o sul foi dedicado a monocultoras de exportação trabalhadas por mão-de-obra escrava, tal como sucedeu no Brasil. E até o século 18 pelo menos, em termos puramente econômicos, o sul foi mais importante do que o norte habitado por camponeses pobres que trabalhavam a terra pessoalmente. Então, a explicação para a grande discrepância quanto aos níveis de riqueza  & corrupção entre nós e os EUA tem uma explicação diferente.

Mas qual explicação? Serão os anglo-saxônicos inerentemente mais honestos que os ibéricos? É verdade que Portugal e Espanha no século 16 não eram nenhum modelo de moralidade pública. Mas tampouco a Inglaterra o era: até o século 18, o dito popular "é como encontrar um homem honesto no parlamento" equivalia ao nosso "é como encontrar agulha no palheiro". A meu ver, a moralidade pública nasce da sociedade civil e propaga-se à esfera pública, e não o oposto. Sem grandes floreios retóricos, eu penso que a real explicação é mais prosaica: No Brasil, o Estado se formou antes da sociedade civil, ao passo que nos EUA, estado e sociedade civil formaram-se juntos. O colono que aportava aqui, já encontrava uma administração pronta e funcionando nos mesmos moldes que funcionava em Portugal, e sabia que tinha que buscar a proteção desses homens de gabinete se quisesse prosperar, ou mesmo sobreviver na nova terra. Estabeleceu-se então uma relação de dependência do privado para com o público, que de geração em geração chegou até aos dias atuais. Fica flagrante quando se vê que o sonho de todo jovem recém-formado não é fundar seu próprio negócio, mas passar em algum concurso, e a fórmula do sucesso das empresas não é a competência nos negócios, mas as ligações com os políticos. A honestidade nos negócios é estabelecida, a meu ver, nas mediações da vida diária, no preço que se paga por ser desonesto em termos de perda de confiança. Isso só acontece dentro da sociedade civil, pois o Estado, como no tempo dos degredados, tudo o que pode fazer é mandar para a cadeia. Penso que quando a sociedade civil começar a se tornar mais importante do que o Estado, e o mercado se tornar mais importante do que o círculo dos amigos-do-rei, começaremos a ser mais honestos.

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